quinta-feira, 6 de junho de 2024

Homem ao mar!

Morador de rua dormindo sob cobertas.

“VIII. A onda e a sombra


Homem ao mar!

Que importa? O navio não pára. O vento sopra, o sombrio navio continua na sua rota forçada e passa.

O homem desaparece, depois reaparece, mergulha e volta à tona, chama, estende os braços; ninguém o ouve. O navio, estreme­cendo sob o tufão, está voltado a suas manobras; nem os marujos nem os passageiros vêem mais o homem submerso; sua cabeça é apenas um ponto escuro na imensidão das ondas.

Grita desesperadamente das profundezas. Que espectro  essa vela que lhe foge! Olha freneticamente para ela. E ela se afasta, vai desaparecendo, some. Havia pouco ainda ele estava lá, fazia parte da tripulação, ia e vinha no convés com os outros, tinha sua porção de ar e de sol, vivia. Agora, o que havia acontecido? Escorregara, caíra, tudo se acabara.

Está dentro da água, que é monstruosa. Sob os pés, nada mais que ruína, nada encontra. As vagas envolvem-no pavorosamente, rasgadas e sacudidas pelo vento; o vai-e-vem do abismo o empurra os farrapos das águas agitam-se em volta de sua cabeça; uma multidão de ondas rebenta sobre ele; estranhas aberturas quase o devoram cada vez que afunda, entrevê precipícios escuros; uma medonha vegetação o prende, emaranha-se em seus pés, o atrai para ela; ele sente se transformar em abismo, fazer parte da espuma; as ondas jogam-no de um lado para o outro; ele bebe o amargo; o oceano, covarde, se empenha em afogá-lo; a imensidão brinca com sua agonia. Parece que toda essa água é o ódio.

Mas ele luta.

Tenta defender-se, tenta sustentar-se, esforça-se, nada. Ele, pobre força logo esgotada, combate o inesgotável.

Onde está o navio? Longe. Mal se avista por entre as trevas pálidas do horizonte.

Sopram rajadas; a espuma das ondas o vence. Levanta os olhos e não vê mais que a lividez das nuvens. Assiste agonizante ao imenso delírio do mar e é ele o castigado por essa loucura. Ouve ruídos estranhos ao homem, que parecem vir de fora da terra e de algum terrível lugar.

Há pássaros nas nuvens, assim como há anjos por cima dos infortúnios humanos. Mas o que podem fazer por ele?. Os pássaros voam, cantam, planam, e ele, agoniza.

Sente-se sepultado ao mesmo tempo por estes dois infinitos: o oceano e o céu; um é sepulcro, o outro, mortalha.

Vem a noite. Há horas que ele nada, está no fim de suas forças; aquele navio, aquele vulto longínquo onde havia homens, apagou-se; ele está só num formidável turbilhão crepuscular; afunda, se debate, se retorce, sente abaixo monstruosas vagas do invisível; chama.

Não há mais homens. Onde está Deus?

Grita. Alguém! Alguém! Grita sem parar. Nada no horizonte, nada no céu.

Implora ao espaço, à onda, à alga, ao recife; são surdos. Suplica à tempestade; a tempestade, imperturbável, só obedece ao infinito.

Em torno dele, escuridão, névoa, solidão, tumulto tempestuoso e inconsciente, redemoinho incessante das águas bravias. Dentro dele, horror e cansaço. Abaixo dele, a desgraça. Nenhum ponto de apoio.

Pensa nas tenebrosas aventuras de um cadáver na escuridão sem limites. Um frio imenso o paralisa. Suas mãos crispam-se, fecham-se e agarram o nada. Ventos, nuvens, turbilhões, rajadas, estrelas inúteis! Que fazer? Desesperado, abandona-se, cansado, deixa-se morrer, não se importa, deixa-se ir, larga mão, para sempre avança pelas lúgubres profundezas da voragem que o engole .

Ó implacável marcha das sociedades humanas! Perda de homens e de almas no meio do caminho! Oceano, onde desaparece tudo o que a lei desampara! Sinistro sumiço de socorro! Ó morte-moral!

Mar, a inexorável escuridão social onde a penalidade arremessa seus condenados. Mar, a imensa miséria!

A alma, na correnteza desse abismo, tomar-se cadáver. Quem a ressuscitará?”

Victor Hugo in “Os Miseráveis”

Referência:
HUGO, Victor. Os Miseráveis; texto integral: tradução Regina Célia de Oliveira. São Paulo: Martin Claret, 2007. 2 v. (Coleção a obra prima de cada autor. Série ouro).